terça-feira, 3 de março de 2020

Avó

Eu não gosto de chorar em público. Nem gosto de expor as minhas fragilidades. Tento sempre manter uma fachada alegre, optimista, à "prova de bala". Há quem me considere insensível e apática. Não sou, aliás, estou muito longe de o ser. Sou até bastante sensível, e vivi toda a minha vida a tentar evitar as lágrimas porque elas caíam com demasiada facilidade. Talvez seja por isso que hoje sou mais forte. Mas isso agora não importa.
Quero falar sobre a minha avó. A mulher que me criou e que partiu há pouco mais de um ano. Uma mulher que me ensinou como ser paciente com o marido, mesmo quando ele era um desastre como tal; como manter a alegria perante variadas situações difíceis; como ser optimista e resiliente quando a saúde física não é ideal; ensinou-me a ser bondosa num mundo frio e cruel; ensinou-me a fazer contas durante todo o ensino primário.
A minha avó sempre teve uma visão extremamente fraca, e para o fim da sua vida estava praticamente cega, mas nunca deixou que os seus olhos inúteis a limitassem. Cozinhava para mim, sempre guiada pelas suas mãos, e ainda hoje estou para saber como é que o frango guizado com esparguete ficava tão bom; limpava o chão de gatas, felizmente a casa era pequenina; arrumava a sua roupa toda por ordem e vestia-se sempre bem, mesmo sem ver as cores; era única pessoa que tinha jeito para me pentear, aproveitava eu estar distraída com a TV para passar as escova de forma delicada pelo meu cabelo emaranhado; no verão, quando eu não tinha companhia, ia comigo à praia e ficava sentada na toalha simplesmente a apreciar o calor do sol e som das ondas a rebentar na areia. 
Amava que eu lhe lesse a Bíblia e pedia-me para procurar os seus textos favoritos. Sempre gostou que lhe lesse o texto diário e estudasse a Sentinela com ela. O último texto bíblico que lhe li, antes dela perder total consciência do que a rodeava, foi Isaías 46:4, que diz: "Até à vossa velhice, eu serei o mesmo; Até os vossos cabelos ficarem brancos, continuarei a sustentar-vos. Assim como tenho feito, irei carregar-vos, sustentar-vos e salvar-vos."
Quando eu a levava a algum lugar a pé, eu irritava-me com ela porque andava muito devagar e tropeçava com facilidade. Agarrava-se com força ao meu braço para se amparar e eu acabava com o braço dormente. Hoje gostava de voltar a sair à rua com ela. Até a levaria ao colo se fosse necessário.
Apesar dos seus olhos não funcionarem, ela via o mundo com um optimismo vibrante e contagiante, e ansiava por um futuro melhor. Hoje também eu aguardo por esse futuro.
Era uma mulher que toda a gente recorda com carinho e saudade, alguém que esteve sempre presente e não se esquecia de ninguém. Conhecia as pessoas pela voz e pelas mãos. Por vezes, nem precisavam de lhe dizer nada, bastava um gesto típico e ela reconhecia-os de imediato. 
Generosa e por vezes um pouco ingénua, mas isso pouco importa, pois o seu coração era do tamanho do mundo. Tinha apenas uma filha e uma neta, mas ganhou muitos netos, netas, filhos e filhas.
Quando morreu, admito que não consegui demonstrar o que verdadeiramente sentia. Estive dois dias meio dormente, até ouvir a cerimónia fúnebre e ver os meus amigos e familiares a chorarem, e perceber o quanto a minha avó era apreciada por todos. 

Alguns dias depois do seu funeral, quando estava em casa a realizar uma tarefa banal, começou a tocar uma música que me fez pensar na minha avó... 

"I hope you know that you're my home,
but now I'm lost, so lost
I'm gonna carry your bones
I'm gonna carry them all
I'm gonna carry you home
I'm gonna bury these bones
I'm gonna write it in stone
that you were my home, my home..."
- Brighton, "Forest Fire"

Nesse momento, chorei pela minha avó. Chorei ao perceber que não voltaria a ouvir a sua voz e a sua gargalhada, a ver o seu sorriso e a sua boa disposição. Não voltaria a ouvir as suas histórias de vida, que achava aborrecidas quando era mais nova, e agora ouvi-las-ia com todo o gosto. 
Foi uma amiga à qual eu não dei o devido valor, e talvez não lhe tenha dito o quanto ela significava para mim. Tentei dar o meu melhor quando ela mais precisou, mas talvez pudesse ter feito mais. 
Já nada disto importa, pois ela não me pode ouvir, mas no futuro, hei-de compensá-la. 
Tudo isto são os pensamentos que não consigo exteriorizar, e que levei um ano a digerir. Aqui está o meu coração aberto. 

5 comentários:

  1. Um amor que ninguém consegue ver ou medir mas que tem a força do mundo.

    Um amor que ninguém pode substituir mas que sabes que vais voltar a sentir.

    Neoqeta

    ResponderEliminar
  2. Eras a sua Princesa, além de mim ela era a única que queria que fosses uma menina, ela amava-te muito ��������

    ResponderEliminar
  3. Que bom foi recordar a "avó"...não era minha avó de sangue, mas foi a avó que escolhi...tantas gargalhadas que demos juntas e tantas tardes bem passadas e que recordo muitas vezes com sorriso saudoso...tão bom teres recordar a "avó"!!!

    ResponderEliminar
  4. Uma bela descrição da nossa "tia-avó", podemos não dar às vezes o devido valor aos momentos que passamos com os que amamos mas estar com eles nesses momentos é muito importante. Ela era uma mulher muito especial,de um coração extraordinário e que ansiamos ver e ela nos ver"finalmente" a nós sem reconhecer apenas pela voz ou toque! ��

    ResponderEliminar